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O FANTASMA DA SICÍLIA - Fabio Grassadonia e Antonio Piazza




A MÁFIA E O ENRAIZAMENTO DA DOR


Crítica de Marco Fialho

Mais do que ser um filme sobre a máfia, “O Fantasma da Sicília” é um filme sobre a dor enraizada pela permanência da máfia na sociedade italiana, por isso o que menos vemos nas imagens são os os próprios mafiosos, na verdade eles mal se constituem para nós espectadores como personagens no filme. Essa pode ser considerada a parte mais original dessa intrigante obra. O que importa aqui é de como a persistência da máfia na Sicília interferiu no cotidiano e na própria constituição psíquica de seus personagens. Melhor do que mostrar a brutalidade explícita dos mafiosos (apesar dela estar também na história), já tão banalizada em diversos filmes do gênero, os diretores preferem centralizar sua história na paixão interdita dos adolescentes Luna e Giuseppe, mostrando como essa violência da máfia envenena as entranhas de qualquer laço familiar ou social. A máfia está sempre ali no filme, com seu pote de veneno a macular, apesar de aparecer como uma realidade posta na maior parte do tempo apenas no extra-campo. Não à toa existe toda uma relação, para além do simbolismo, de Luna com o veneno, que aliás é um veneno de rato, animal no caso bem apropriado quando estamos falando de mafiosos.     
Para essa tese da máfia como envenenadora social ser viável, os diretores Fabio Grassadonia e Antonio Piazza habilmente montam toda uma atmosfera de fábula, amparada numa fotografia primorosa que por meio das sombras e da escuridão explora com precisão um ambiente de horror, lançando mão das constantes cenas onde prevalecem as névoas, a chuva e o fundo obscuro do lago. A forma de se conceber o espaço chama atenção, em especial as diversas cenas de subsolo e os planos próximos de troncos de árvores e de pedras, que salientam um tom assustador em muitas cenas do filme. Muito interessante como os diretores associam essa característica do relevo, esse terreno rico em montanhas, pedras e grutas como um elemento que favorece à sedimentação e de como conseguem relacionar esses elementos naturais à máfia. Curioso a inserção de imagens referentes às colunas que remontam ao Império Romano e que pairam misteriosamente na narrativa, e nos fazem refletir sobre elas, já que são  historicamente icônicas da Itália mediterrânea. A insistência nessas imagens teria a intenção de insinuar que a máfia já estaria encruada na história da Itália tal como a Roma Antiga? Ou apenas sugerem o peso que a história exerce na sociedade italiana? Ou ainda que a questão da máfia não estaria circunscrita apenas ao território siciliano, e sim italiano? Essas são apenas algumas perguntas que ficam reverberando no pós-filme.
               
Queria agora comentar a primeira cena de “O Fantasma da Sicília”, em especial, porque ela aparentemente nada diz, apenas parece querer nos situar acerca de um ambiente. Tudo começa tão escuro que temos a impressão que vemos uma imensa parede subterrânea de pedra úmida, em um lugar ainda impreciso, iluminado por uma sinistra e parca luz amarelada. Mas panoramicamente a câmera vai subindo, até chegar no nível do solo, onde acompanhamos uma menina seguindo, escondida, um menino que se desvia do caminho de casa para adentrar numa trilha, que o leva rumo à floresta. Essa cena nos leva de imediato à reflexão acerca desse subsolo, do porquê se começar o filme com essa imagem tão soturna, e não pela perseguição da menina.


Mas há nesse início também um nítido contraste, o do subterrâneo misterioso, com o da floresta que nos é mostrada de forma mítica, selvagem e luminosa, como se estivéssemos em um sonho. Vemos uma menina vouyerizando um menino que brinca suavemente com uma borboleta em sua mão. Mas eles não estão sozinhos, o filme nos faz induzir que há outros a seguí-los, além de nós, claro. Porém o subsolo não deve ser esquecido, pois logo a vida dessa menina se transformará em um inferno e a beleza da borboleta apenas ficará como uma linda miragem. Interessante como os animais, sobretudo a borboleta e a coruja são tomados como elementos simbólicos no filme. A borboleta indicando o golpe brutal que impedirá que o menino chegue à vida adulta, e a coruja marcando a sabedoria da menina, a força que fará ela enxergar para além da escuridão, sua obstinação por encontrar seu amado que desaparecerá. Como fazer uma menina de treze anos se conformar quando todos sabem quem sequestrou o menino e nada fazem para resgatá-lo, pelo medo do mais obscuro terror, e por todos conhecerem a violência inerente à máfia. Portanto, ninguém ousará enfrentar o problema, nem a família nem a polícia.        


Apesar do filme ser baseado numa história real, a desse menino Giuseppe, sequestrado pela máfia em 1993, o mais incrível foi a capacidade dos diretores do filme de se desviarem de uma proposta realista para mergulhar num clima fantasioso, fabular, espelhado pela mente criativa de seus dois personagem jovens. Na história, rapidamente o sonho e a realidade se misturam, e somos convidados a mergulhar nos mistérios que vão se avolumando e lentamente nos envolvendo. O uso de lentes grandes angulares acentuam o clima de vertigem e irrealidade da narrativa, os objetos e espaços se deformam, assim como também os personagens, que tentam ser felizes em um universo onde fatos subterrâneos invadem suas vidas, como em um conto de fadas às avessas.


A obscuridade impregna o filme de forma tão avassaladora que a mãe de Luna tem como hábito ir para a sauna de pedra, no sinistro subsolo de sua casa, para chorar copiosamente sua vida miserável e infeliz. Talvez “O Fantasma de Sicília” seja isso, uma obra que se impõe violentamente contra a crueldade da máfia, mas também contra nós, os chamados cidadãos comuns, que pela passividade permitimos a introjeção de uma série de valores obscuros em nossas vidas, nos tornando algo que a princípio tanto negamos ou recusamos. E nós aqui, no Brasil de 2017, nem podemos nos gabar e dizer que não padecemos desses mesmos sintomas.

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