O tempo e o fluxo: o voo cego em um labirinto
Crítica de Marco Fialho
Quando vou a uma sessão de cinema, incluo nesse âmbito até as poucas salas que incorporam em sua programação o chamado cinema de arte, reparo que cada vez menos as pessoas vão dispostas a se permitir experimentar uma obra que se apresente mais desafiadora, ou de difícil assimilação estética. Digo isso, amparado em vivências minhas, de ver pessoas se retirando das salas ao se deparar com o menor sinal de experimentação de linguagem no campo audiovisual.
Fiz toda essa nota introdutória na minha resenha, e considero ela necessária, para poder começar a falar de “Iran”, novo filme de Walter Carvalho, trabalho de veio experimental, que flerta visivelmente com a videoarte, composto basicamente por imagens sonoras, segundo a avaliação do próprio diretor. Nessa obra ele trabalha um momento de preparação do ator Irandhir Santos para cenas do filme “Redemoinho”, de José Luiz Villamarim. Mas logo na primeira cena somos confrontados esteticamente com imagens e sons que até o fim dos 70 minutos de projeção nos seguirão, sempre no mesmo fluxo e desafiarão a nossa permanência na sala de cinema. Fica então a provocação: embarcaremos nessa viagem ou capitularemos? Pois além de longas, devido a uma elasticidade do tempo, há cenas que vem e mais adiante voltam, ciclicamente, como se Walter tentasse estabelecer com a matéria fílmica a mesma relação ritualística que o ator parece também empreender em sua minuciosa preparação. Daí essa obra exigir a compreensão da construção de um tempo esgarçado, deveras dilatado.
Evidente que “Iran” não é um documentário convencional, sequer sabemos se podemos defini-lo como tal. Neste trabalho, Walter não faz concessões, se deixa levar pelos riscos de uma estética decididamente hermética, pois se submete inteiramente ao fluxo de seu objeto. Não há um só depoimento, nem do ator nem de terceiros, nem imagens de making of do filme “Redemoinho”. A proposta fica longe do intuito de descrever um método profissional ou a vida pregressa do ator, mas se arrisca sim em um mergulho dentro de um labirinto sem se preocupar em sair dele, tendo como ideia mesmo a de se perder por ali.
O preço a pagar pela ousadia é árduo, pois ao longo do filme, pessoas vão se retirando da sala, mas as que ficam, tentando resistir ao ritmo arrastado e ao aparentemente imobilismo das cenas, vão esboçando um visível incômodo à proposta estética de Walter, que sinceramente, rara vezes presenciei em uma exibição pública de um filme. Tem momentos em que o público se entreolha, quem está sentado à frente olha para trás, na esperança de ainda encontrar algum resistente. Relato isso, não na intenção de desqualificar público ou a obra, mas para descrever um ato, o de como é difícil estabelecer um diálogo com “Iran” como obra. A estrutura narrativa, talvez a expressão nem caiba no caso, compõe-se de alguns planos-sequências onde o ator realiza exercícios e estudos para o personagem Luzimar. Em paralelo Walter vai nos revelando um livrinho todo feito a mão por Irandhir Santos, com anotações de diálogos, impressões, desenhos, estabelecimento de pausas, relação com outros personagens, enfim, um registro e um estudo do ator sobre as possibilidades de construção desse personagem. Como se desse uma ideia de redemoinho, desse movimento circular infinito, o diretor também volta a câmera para uma imagem de uma grande roda de uma moenda antiga de cana, na qual filma longamente em close, em seu moto perpétuo.
Se as imagens causam muito incômodo ao espectador pelo seu arrastar infindo, os sons constituem a parte mais dinâmica, e ao meu ver, a mais criativa desse trabalho concebido por Walter Carvalho. Sua construção é detalhista e propicia uma amplitude impressionante de cada cena do filme. Ele colabora para uma construção de uma noção de fluxo do processo, de interação com a preparação do ator, do jogo de exterioridade/interioridade no qual Walter Carvalho tenta captar em suas inquietações. Não à toa Walter escolhe um momento de profunda interioridade, o do ator fechado em um cubículo tentando aflorar ou acessar aquele personagem e de exterioridade, dele nos trilhos do trem sentindo o que era viver numa cidade onde esse som tão característico era integrante de uma rotina de vida. Lá pelo final, a câmera capta uma lágrima do ator ao sentir aquele som do trem invadindo o espaço. Por essa e outras cenas, “Iran” pode ser caracterizado como uma tentativa de leitura livre de um artista sobre o processo de um outro artista, no qual ele logicamente é um admirador.
Muitos podem, e fatalmente irão, se perguntar ao final do filme se algo foi apreendido, ou acrescentado, acerca do trabalho de Irandhir. Mas a ideia de Walter Carvalho decididamente não era a de fazer um levantamento horizontalizado sobre esse processo de criação de um personagem, mas sim de esboçar, por meio de um voo cego e perdido em um labirinto sem volta, uma determinada verdade de um artista em busca de um personagem, que para Walter só existirá a partir do próprio ator imerso em seu próprio processo.
Visto no Festival do Rio 2017, no Kinoplex São Luiz 1.
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