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BLADE RUNNER 2049 - Direção Denis Villeneuve




A indústria da memória e da destruição - a atualização de Blade Runner

Crítica de Marco Fialho

A continuação do filme-ícone dos anos 1980, “Blade Runner - o caçador de andróides” era aguardada com muita ansiedade por uma legião de fãs. O primeiro impacto que “Blade Runner 2049” causou foi a divulgação de que Ridley Scott apenas produziria a nova obra e que a direção ficaria a cargo do competente canadense Denis Villeneuve (dos sucessos “A Chegada” e “Incêndios”).


Uma das primeiras consequências de ter Denis Villeneuve na condução de “Blade Runner 2049” é o acréscimo evidente de uma dose dramática que se sobrepõe à aventura, o que inverte a lógica narrativa da maioria dos filmes de ficção científica atuais, onde o ritmo alucinado surge constantemente como predominante. Essa faceta mais introspectiva, já havia sido observada em seu filme anterior, o surpreendente “A chegada”. O diretor trabalha muito com uma cenografia constantemente reveladora de uma sociedade assentada no caos e na destruição. O planeta praticamente não existe mais, é constituído por ruínas, um imenso amontoado de objetos descartados e obsoletos.   


Enquanto a atmosfera do filme de 1982 mesclava o soturno extraído do noir com a estética pós-moderna, que abusava do uso do neón e flertava delicadamente com o universo brega, com maquiagens e figurinos pesados, a visão do filme de agora se inclina para o apocalíptico, que apesar de manter traços do noir, não salienta tanto o colorido do neón, que fica secundarizado. Agora são os hologramas que assumem a primazia da estética futurista do filme. Mas a fotografia da continuação revela-se bem mais sombria do que a de 1982, com cenas onde há uma predominância de uma cor única, normalmente o ocre e o azul, cores incorporadas também no cartaz do filme. A trilha sonora criada por Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch foi visivelmente concebida de forma a compor com a proposta imagética da obra como um todo, ela possui um grande mérito de não aparecer mais do que os elementos visuais, o que soa aqui como mérito, já que a maioria dos filmes vindos de Hollywood esse é um ponto dos mais incômodos.


Villeneuve talvez tenha encontrado o papel mais adequado possível para Ryan Gosling em toda a sua carreira, o de  um frio replicante, que apesar de aparecer muito em cena, esboça pouquíssimas palavras durante as quase três horas de filme. Uma pena que o ator aproveite pouco os ricos conflitos identitários de seu personagem. Gosling, mais uma vez reafurma, como ator, ser o homem de uma face só.


O nome do personagem de Gosling, K, também merece um comentário. Ele pode ser uma referência ao próprio autor do livro, Philip K. Dick, que inspirou o filme de 1982, mas creio ser importante lançar uma outra dúvida. Ficamos tentados a associá-lo ao “O Processo”, de Kafka, onde o personagem de mesmo nome mergulha em um labirinto persecutório, de onde não consegue sair. O K de “Blade Runner 2049” também pode ser caracterizado como imerso em uma crise, ao se interrogar sobre a possibilidade de ter vindo ao mundo parido, e não como um produto de laboratório. E será essa dúvida que o levará a desvendar mistérios sobre a sua própria existência e de outros personagens do filme. Assim, a discussão acerca da memória é alçada ao primeiro plano e torna-se decisiva na própria estrutura de construção dos personagens, em especial para o de K.


Em um mundo repleto de replicantes, criados para cumprir ordens dos poderosos empresários que os controlam implantando sonhos e memórias, somos levados a refletir sobre o processo de artificialização da nossa sociedade, onde a virtualização cria mundos paralelos e relações ilusórias mediados por imagens fabricadas. Nesse contexto caótico, enquanto os homens-máquinas almejam a humanização, inclusive o milagre da procriação, os homens estão brutalizados, vivendo mecanicamente e de forma medíocre.


“Blade Runner 2049” em sua distopia feérica e melancólica traz questionamentos interessantes sobre o futuro e a banalização da própria presença, assim como do homem e da sua experiência. Se passado e presente por conta de uma memória fluida e cambiante são tão imprecisos e incertos, o filme nos traz indagações fundamentais e nos lança perguntas significativas sobre a identidade humana no nosso ambiente impregnado pelo virtual. A enxurrada de imagens fabricadas e mediadas pela tecnologia está gerando que tipo de homem contemporâneo? Quais interesses econômicos estão por trás da discussão da memória? Como controlar a força e o predomínio dos interesses de grandes corporações de um contexto cada vez mais midiático e tecnológico?


Um pano de fundo crucial em “Blade Runner 2049” e que não deve ser desconsiderado, é justamente o desse mundo que desfaz e se destrói constantemente, que incorpora o descarte como rotina, que nos escapa, mas que também nos sequestra para um lugar que não nos comunica nada e só nos leva ao vazio do instantâneo. Fica então a pergunta: o que nos pertencerá em um futuro que nos é apresentado ou sugerido como presente? Quando a nossa memória não nos pertence mais, o que entra em jogo é o nosso pertencimento a um determinado mundo dominado pelo artificialismo das máquinas, apesar que nem elas aceitam passivamente um papel submisso. Se “Blade Runner 2049” não responde todas essas perguntas, ele nos brinda com reflexões relevantes acerca da nossa identidade, em um mundo cada vez  mais dominado pela manipulação e interesses escusos. Ou será que todos nós estamos condenados a viver apenas na ilusão, como replicantes, tal como K.?

Visto no Kinoplex Tijuca, em 20 de outubro de 2017, versão 3D (que por sinal é dispensável).

Comentários

  1. Villeneuve consegue ao mesmo tempo ser reverente ao clássico de Ridley Scott e dar um passo além naquele universo distópico, expandindo-o. Filmaço.

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  2. Denis Villeneuve como sempre nos deixa um trabalho de excelente qualidade, sem dúvida é um dos melhores diretores que existem em Hollywood, a maneira em que consegue transmitir tantas emoções com um filme ao espectador é maravilhoso. Também adorei o trabalho do Hans Zimmer y Benjamin Wallfisch em trilha sonora Blande Runner. Adorei a seleção que fez, por que conseguiu acompanhar a perfeição cada situação do filme,realmente vale a pena todo o trabalho que a produção fez, cada detalhe faz que seja um grande filme. A fotografia é impecável, ao igual que a edição. Sem dúvida voltaria a ver este filme!

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