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AS BOAS MANEIRAS - Direção de Juliana Rojas e Marco Dutra



O confronto entre o simbólico e a literalidade


Crítica de Marco Fialho


Depois de Juliana Rojas e Marco Dutra realizarem dois trabalhos solos de primeira linha, “A Sinfonia da Necrópole” e “O Silêncio do Céu”, respectivamente, eles voltam novamente a fazer um filme em dupla, “As Boas Maneiras”, tendo participado do Festival de Locarno e levado o prêmio especial do júri. O projeto é muito ambicioso, extremamente bem produzido e fotografado exemplarmente pelo competente Rui Poças. Nesse novo filme os diretores ratificam o gosto pelo gênero terror, já evidenciado na primeira obra deles, “Trabalhar Cansa”, e recriam agora, a seu modo, uma história de lobisomem. O filme possui duas partes bem delimitadas, o da gestação e o da criação desse estranho ser.


Ao desenvolverem essas duas partes, fica bem evidente o desnível existente entre elas. Há uma primeira parte brilhante, enigmática, complexa, cheia de simbolismos, nuances, dualidades bem alinhavadas, enfim, toda construída de forma arrebatadora, bem ao estilo dessa talentosa dupla. Já a segunda parte, infelizmente, as minúcias citadas acima são freadas para se impor um novo ritmo, onde a aventura, a superficialidade da ação e os efeitos especiais se sobrepõem ao mistério e as diversas camadas de significação presentes na primeira parte. Esse desnível aqui assinalado não tira a qualidade e os méritos do filme, apenas subtrai dele uma maior possibilidade de potência quando o analisamos no todo.


Logo no título os diretores já sinalizam uma sutileza interessante. As tais boas maneiras apontam para a questão classista na qual o filme mergulha, situação tipicamente brasileira, a da educação dos privilegiados em comparação a dos excluídos. Essas dualidades, pobre e rico, interior e cidade, branco e negro, heterossexual e homossexual, razão e emoção, noite e dia, são exploradas com maestria, mantendo-se um clima de mistério, suspense e deixando no ar sempre um algo de sobrenatural no que estamos vendo. O tom fabular é estabelecido desde o início, inclusive na São Paulo que nos é mostrada, encoberta com filtros que lhe confere um aspecto fantasioso, de uma beleza que muito lembram os contos de fadas da Disney, uma referência assumida pelos próprios diretores.


A grandeza da primeira parte se dá desde a primeira sequência do filme, quando a personagem Clara (será uma inspiração em Clara dos anjos de Lima Barreto?), negra, vivida soberbamente pela atriz portuguesa Isabel Zuaa, chega a um prédio típico da classe alta paulistana, tocando o interfone e o porteiro solicita que ela suba pelo elevador de serviço. A cena da entrada dela é muito bem filmada, pois entre ela e o elevador tem dois vidros a serem transpassados. Como a câmera está colocada do lado de dentro do prédio, sua imagem fica enevoada, o que já nos informa muito sobre como a elite brasileira enxerga essa mulher.


Logo na contratação dela como babá mais uma vez fica evidente a maneira como a classe dominante trata seus empregados no Brasil. Ela receberá salário como babá, mas cuidará da casa, da comida, das compras, enfim, assumirá na prática um trabalho para muito além do que está sendo contratada. Mas a relação que Clara vai desenvolver a posteriori com Ana, encarnada por Marjorie Estiano (surpreendente no papel), tomará contornos imprevisíveis. Como a criança ainda está na barriga de Ana, Clara cuidará da patroa durante toda essa primeira parte do filme. Esse contato entre as duas será intenso, mas também envolto de mistérios, seduções e revelações, com várias cenas de tirar o fôlego. As duas possuem muitas diferenças (no temperamento, na cor da pele e na origem social por exemplo), porém ambas são desgarradas, sozinhas no mundo, belas e abandonadas pelos seus. A cada nova cena a sensualidade e o clima sombrio vão tomando conta da história, e temos a impressão de que tudo pode acontecer, em especial à noite, nas luas cheias, quando Ana parece incorporar um bicho. Uma cena especial é a de Ana narrando como aconteceu sua gravidez, toda contada por meio da técnica de animação, realmente um primor e que mexe com a fantasia e a imaginação do espectador, já então situado no universo fabular proposto pelos diretores do filme. Outro elemento que sobressai nessa primeira parte é a montagem. Ela é tão bem orquestrada que em vários momentos nos faz rir pela simples junção dos planos. Um bom exemplo acontece quando estamos em um plano de Ana cometendo um brutal assassinato, e inesperadamente, em um corte seco, pulamos para outro onde ela dança feliz da vida em seu apartamento.


A segunda parte do filme inicia com o nascimento da criança e a revelação de um menino estranho, com um aspecto animalesco que vem ao mundo da maneira mais agressiva e irreal possível. A partir desse momento há uma virada radical no próprio estilo narrativo. Como se junto com o pequeno lobisomem nascesse também uma outra obra.

Os aspectos mais profundos, as diversas camadas que a história mantinha até então, sobretudo a sua natureza dicotômica, esvai-se e passamos a embarcar em uma outra concepção da obra. O espaço onírico é substituído por um terror explícito, permeado por uma ação previsível que nos traz sustos banais, como se estivéssemos assistindo a um filme de terror dos anos 1980, penso aqui mais claramente em “Um Lobisomem Americano em Londres” (1981), de John Landis, onde os efeitos especiais da transformação do homem em fera se tornam mais importantes do que a própria história narrada. O literal nesse ponto mais do que superar o universo simbólico, o enfraquece. Mesmo com Isabel Zuaa se esforçando para manter a qualidade interpretativa, a fragilidade da construção fílmica grita nessa segunda parte, comprometendo o resultado final do filme. Mesmo com uma direção segura nas mãos, o roteiro retira a profundidade do enredo e diminui o nosso interesse, que passa apenas a acompanhar a ação. Enquanto espectadores saímos de um posição de extrema participação para a oposta, a de passividade, já que uma única camada nos é então oferecida a partir dessa segunda parte, a da fantasia.


Mesmo com essas observações em relação à irregularidade de “As Boas Maneiras”, vale muito à pena ir ao cinema conferir essa produção rebuscada que conta com o talento imaginativo de Juliana Rojas e Marco Dutra, diretores espetaculares, que já comprovaram isso em suas obras anteriores, e que ainda vão dar muito o que falar em nosso cinema.                               

Visto no Cine Odeon, no Festival do Rio 2017.

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