Pai e filha estão no centro da narrativa e da mise-en-scène de A Filha do Palhaço, Joana (Lis Sutter) e Renato (Démick Lopes). Pedro Diógenes constrói um filme sobre a aproximação desses dois personagens que anseiam resgatar um tempo perdido pela ausência forçada pelos caminhos imprevisíveis e tortuosos da vida. Na reconexão entre pai e filha está a beleza de uma narrativa fluente que Diógenes impõe ao seu filme. Como já havia feito em Inferninho (2019), Diógenes faz uso de uma fotografia que por vários momentos é impregnada por um universo que beira o onírico e muito realiza isso por meio de Silvanelly, uma personagem artística que Renato interpreta nos bares noturnos de Fortaleza. A interpretação está bem no foco de A Filha do Palhaço, já que cada personagem se esforça para se equilibrar em uma performance perante às adversidades da vida. Quais os papéis que podemos representar diante de um mundo que precisamos descobrir e redescobrir constantemente? O bom da narrativa de Diógenes é o quanto cada um se permite embarcar na sua própria aventura. E o filme parece estar junto com pai e filha nessa viagem.
Silvanelly traz para A Filha do Palhaço um frescor que só Diógenes consegue introduzir nos seus dramas. Logo na primeira cena, antes de aparecer para o pai, Joana assiste incógnita à apresentação humorística de Silvanelly, para depois mentir para o pai que não havia visto. Talvez, porque Joana queria chegar acessando outro personagem, o Renato, seu pai ausente. Isso mostra que Diógenes não quer apostar nos conflitos logo de cara, prefere primeiro estabelecer os elos entre os personagens para só depois desvendar os nós deixados pelo passado. Silvanelly é o presente, o ganha-pão de Renato, o que lhe permite sobreviver com algum resquício do passado artístico frustante como ator.
Mas não adianta, o passado é um vulto reincidente a passear pela trama de A Filha do Palhaço, nele reside os fantasmas e os ressentimentos tanto entre pai e filha quanto entre Renato e a ex-esposa. Ter abandonado mãe e filha para viver um amor com outro homem deixou marcas profundas difíceis de serem apagadas por todos os envolvidos. A trama de Diógenes transita entre se viver em um mundo proibido ou aceitá-lo em suas complexidades. Esse é o fio delicado e fino no qual Diógenes precisa atravessar. Qualquer deslize, tudo pode desandar de um vez só. Por isso, a força de A Filha do Palhaço está na construção dos personagens pelos atores. São Renato e Joana que seguram a corda-bamba narrativa que Diógenes desenha para a sua obra, nas cumplicidades que o trabalho de Démick Lopes e Lis Sutter fazem florescer cena a cena.
A música brega também está presente em A Filha do Palhaço como um componente que fala muito da realidade descentrada de Fortaleza, mas também muitas vezes como um alívio cômico para o filme. Outro elemento cômico é reforçado a partir da entrada em cena do personagem Marlon (Jesuíta Barbosa), um artista de teatro que luta para manter seu espetáculo de pé, sem jamais perder o humor. Diógenes vai assim inserindo doses de estranhezas à trama, fugindo das narrativas fáceis, se esforçando por deslizar do convencional, tão comum e que a narrativa clássica impõe às histórias as fazendo derreter. A escolha por personagens vindos das camadas menos abonadas da sociedade é outra característica bem acentuada nos filmes de Pedro Diógenes. É necessário contar histórias de pessoas que parecem retiradas do mundo real, preservando toda a mágica que essas vidas possuem.
Em A Filha do Palhaço, mesmo que haja um flerte intencional de Diógenes com o cinema narrativo, temos algumas cenas que esbarram muito mais em um cinema mais autoral do que o mais clássico. Como exemplo, podemos pensar a sequência da festa ocorrida logo após a peça de Marlon, onde temos vários espaços contiguos no mesmo ambiente e a câmera passeia ora pela experiência de Joana com a música ao vivo ora acompanhando do pai bebendo ou flertando com Marlon. Essa incorporação de uma mise-en-scène mais dinâmica, que busca captar a complexidade dos personagens, apreender comportamentos diversos e não só acavalar sequências lógicas e previsíveis, funciona muito para enriquecer a narrativa do filme.
Pedro Diógenes em A Filha do Palhaço prioriza narrar, mas paralelamente faz um esforço por levar o mundo das narrativas mais ousadas da época dos filmes do Alumbramento para um universo digerível a um público mais amplo. Se em Inferninho essas diferenças entre o narrativo e o experimental ficavam mais no meio do caminho, em A Filha do Palhaço essa elasticidade diminuiu, o que afasta Diógenes mais ainda de suas experiências do passado e o aproxima de uma narrativa mais afeita ao clássico.
Por um lado, nitidamente o experimentalismo vai ficando no passado, enquanto a escolha por um cinema mais narrativo vai se impondo com força, ainda que rastros daquele cinema de antes insista em resvalar aqui e acolá no cinema realizado por Diógenes hoje. A existência de cineastas que transitam nesses dois ambientes discursivos é fundamental para o revigoramento do cinema narrativo. O cinema narrativo agradece a presença de cineastas capazes de repensar as velhas fórmulas narrativas do cinema clássico, tanto por incorporar temas mais crucialmente contemporâneos quanto pela possibilidade de expandir a mise-en-scène dos filmes narrativos em geral.
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