O primeiro comentário que cabe a Luz nos Trópicos é que essa é estruturalmente uma obra anti-épica. Há um elemento diacrônico presente, mas jamais utilizado com o intuito causal, pois a relação tempo-história é proficuamente aberta, passível de leituras diversas e amplas. Não se esgota jamais, nem antropologicamente, nem por qualquer outro viés de análise. As suas quase 4 horas e meia de duração são na verdade ilusórias, pois o tempo estendido sentido no filme nos convida a passear por tempos esparsos e culturas díspares, o que faz o tempo parecer mais dilatado ainda, tornando a tentativa de sua mensuração algo estéril e ineficaz.
Sem dúvida, a maior de todas as viagens de Luz nos Trópicos é a sensorial. Somos convidados a simplesmente fruir, sentir sensações que as imagens e sons (sim, eles são muito vibrantes aqui) estão a provocar. Logo nas primeiras imagens do filme somos entregues às texturas. Imagens de uma Nova York distante, impregnada por um filtro avermelhado, o que remete ao estranhamento, óbvio, esse rubro não é da cidade, mas sim imposto pelo filme. Por trás de tanto concreto há um vermelho cor de sangue, como talvez uma metáfora desses arranha-céus portentosos de hoje, um convite a contemplá-los com outros olhos, o de um passado demolidor.
Lembremos que Luz nos Trópicos é também uma obra digressiva, embora não há uma imagem de causa-efeito produzida por Paula Gaitán. Este não é um filme que se propõe a ser panfleto, inclusive passa ao largo de qualquer discurso que aprisione imagens ou sons. Talvez a maior evocação e motivação desta obra seja puramente estética. Embora normalmente todos os artistas fujam radicalmente de uma proposta mais radical quando se pensa em um tema que esbarra no processo colonizador e vendido por séculos como civilizatório. Não que o filme de Paula Gaitán fuja do discurso político, ele apenas quer traçar outra trajetória, talvez estender a própria ideia de como é possível ser um filme político. Lembrar que os exploradores aqui não estão armados, não há tiros, somente um filtro avermelhado, dentre tantas outras belezas naturais e geográficas que Luz nos Trópicos instaura. De resto, cabe à imaginação ou repertório de quem vê. Paula entrega muito do filme a cada um de nós, não embarca em discursos prontos ou que tendem a concluir pensamentos, apresenta imagens poderosas, sons vigorosos tanto capturados diretamente de uma natureza selvagem quanto da mais esmerada construção musical já feita pelo homem. Músicas tradicionais ancestrais, música pop, ruídos, sons da mata e de zonas urbanas se misturam, novamente sem hierarquia durante toda a projeção, numa multiplicidade de registros que muito dizem sobre a profusão de vozes que o filme quer mostrar e discutir.
O que me chamou bastante atenção em relação às paisagens propostas por Paula Gaitán foram as disparidades existentes tanto nas espacialidades quanto nas temporalidades. A simples exposição delas são provocadoras em si, mesmo que haja nelas uma sensação permanente de ausência de intencionalidades. Mas isso apenas promove, ao meu ver, um deslocamento entre emissor e receptor. Comumente, dentro de uma estrutura clássica de narração, há um peso maior dado pelo emissor na mensagem e o que acontece em Luz nos Trópicos é uma clivagem determinante, da que quem emite não precisa fechar um discurso sobre si mesmo, pode até rejeitar o que se pretende ser pré-determinado, permitindo que o receptor assim possa fazê-lo ou mesmo possa reorientar a mensagem. A ousadia da proposta é evidente, mas afinal estamos a falar de uma obra que não está mesmo posta em uma mesa mercadológica. Seu diálogo não se faz pela lógica dos ingressos vendidos. Por isso, é necessário voltarmos ao anti-épico, que proferimos lá no início deste texto.
Dentro de uma concepção calcada na narrativa épica, o que deve ser narrado são grandes feitos históricos e personagens cruciais, dotados de força muitas vezes sustentadas por uma entidade superior ou sobre-humana. Evidente, que Gaitán toma outros caminhos em Luz nos Trópicos, não cabendo a figura do herói como fio condutor. Os pontos de partidas são vários, assim como os narradores também, ainda que a descrição do narrador da expedição, em voz off, seja preponderante em boa parte do filme, ela não é a única. Ainda tem a narração e a voz dos povos originários, inclusive na primeira cena, como se aquele remanescente destes povos estivesse a vagar na contemporaneidade assombrado por uma voz ancestral irremediável. Afinal, o que parece é que todos nós estamos à deriva nesse barco-planeta, cada qual com sua diáspora e rio sem fim, cada qual em busca de sua cosmogonia.
A falta de hierarquização da narrativa de Gaitán é correspondente à própria falta de hierarquia dos personagens e povos. A persistência da existência das culturas ameríndias é tão assustadora quanto a visão paisagística na qual se transformou Nova York. Tanto que uma das imagens mais impactantes de Luz nos Trópicos está lá no fim do filme, quando dois indígenas de gerações diferentes olham silenciosamente atônitos para a Ilha de Manhattan, antiga habitação dos povos originários da América do Norte, e depois de se entreolharem como se perguntassem: "o que fizeram com a nossa terra?"
Outro momento significativo é quando o mesmo jovem que olha para Nova York, se encontra com ancestrais brasileiros e mostra um áudio feito pelo seu avô para seus descendentes: "seus olhos são meus olhos, sua boca é a minha boca, minha sombra é a sua sombra, suas palavras são as minhas palavras." Esse pensamento ficou tamborilando em mim, mesmo depois do filme acabar. Via nele uma bússola a me guiar nas estradas tortuosas e incertas nas quais a narrativa de Luz nos Trópicos vai nos jogando com sua fragmentação aparentemente excessiva.
Preferi desde as primeiras cenas de Luz nos Trópicos assumir o filme tal quem frui uma obra sinfônica infindável, daquelas em que se é forçado a sair de si para penetrar em outro universo, ou quem sabe, até em outro formato narrativo. Os blocos temáticos do filme vão se alongando como se cada uma deles fosse um convite reiterado para uma nova viagem. A ideia de Luz nos Trópicos vai lentamente se elucidando: vamos falar do mundo de uma outra maneira e com olhos virginais? Vamos viver a experiência de uns cientistas, biólogos, artistas que se embrenham na mata do pantanal noutra época histórica para descobrir um outro mundo, ainda intacto tanto do contato quanto dos olhos humanos? Gaitán se inspirou nos relatos do viajante naturalista Georg Heinrich Von Langsdorff, um homem de Nassau, naturalizado russo, que foi financiado por um Czar da Rússia para descobrir produtos desconhecidos do mercado do Século XIX, mas o filme não é decisivamente sobre isso. O que vemos é Gaitán se encantar pela paisagem, tal como os expedicionários também foram seduzidos, o que resulta em imagens e sons por vezes inacreditáveis de tanta beleza que emanam. A fotografia de Pedro Urano se esbalda a criar imagens surpreendentes.
Ao trabalhar com as temporalidades e espacialidades, como em um jogo livre entre imagens, palavras e sons, e praticamente sem diálogos, Luz nos Trópicos inspira uma nova maneira de reintegração desses elementos nesse mundo caótico de hoje, tomado pela urbanização desenfreada que a história ensejou. Entre as palavras registradas em cadernos de anotação de quem se encanta com as maravilhas de um mundo inóspito, sem sentido e belo em seu esplendor paradisíaco, eis que chegamos no incontornável, em um caminho difícil de caminhar. É preciso uma reconexão com a natureza, mas como fazê-la depois de tantas modificações na paisagem original e o exponencial aumento demográfico, quando as pistas da ancestralidade estão cada vez mais escassas?
O filme ainda mostra os povos originários como peças de museus nas cidades, como um mero artefato perdido numa longa linha do tempo. Sim, mas temos ainda a arte como representação do mundo, mas será ela suficiente para nos livrar do caos? O certo é que estamos dispersos, todos frutos de uma diáspora que desintegrou ao invés de juntar. As disparidades espaciais e temporais que Luz no Trópicos tanto sublinha em sua narrativa, são um fenômeno do mundo contemporâneo, em que os saberes ancestrais ainda persistem, embora o mundo industrial e urbano das grandes cidades continue se expandindo de maneira ameaçadora para o planeta. O fato é que o concreto é a árvore do homem contemporâneo. O filme de Paula Gaitán joga uma luz diacrônica e fundamental nessa discussão.
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