Texto de Marco Fialho
O diretor grego Yorgos Lanthimos recria em "Pobres criaturas" a famosa história de Frankenstein, de Mary Shelley, mas a faz como uma fábula mordaz feminista, imponente na forma e demolidora como enredo. Bella Baxter jamais será esquecida por quem a vê, uma protagonista que renasce no próprio processo opressivo, de mulher aprisionada se torna senhora de si mesma, se reinventando no caminho, em uma autodescoberta de tirar o fôlego. A força selvagem e indomável de Emma Stone como Bella Baxter é completamente arrebatadora.
"Pobres criaturas", baseado no livro homônimo de Alasdair Gray, é o melhor cinema que o exótico Yorgos Lanthimos nos ofereceu em sua carreira. Há bizarrices à moda Lanthimos? Evidente que sim. Mas creio que aqui bem mais controlada e engendrada numa proposta estética e ética mais ampla. Esse é um filme onde a forma se emana ao conteúdo expressivamente. Mesmo que o diretor se ampare e sugue muito de sua obra em Frankenstein, livro crucial da literatura fantástica, escrito pioneiramente por Mary Shelley, em uma época em que as mulheres não podiam ser muita coisa, muito menos escritora.
Para Lanthimos, a história se escreve por linhas tortas e a ciência se faz entre uma experiência macabra e uma devoção religiosa. Quem é God, um curioso médico, um personagem enigmático e soturno de Willem Dafoe (em mais uma interpretação exemplar)? É impressionante como Lanthimos constrói uma Londres vitoriana artificial, bela e estranha, com uma cenografia que diz mais sobre a trama do que o próprio roteiro, por exemplo. Mas, e a fotografia, com suas lentes olho de peixe a distorcer e a baratinar toda a imagem? E o P&B impactante de todo o começo, que contrasta com a riqueza da cenografia e do figurino? Mas quando a cor aparece, a estranheza se espalha vivamente por todos os lados de "Pobres criaturas", o mundo vitoriano impecavelmente límpido é brutalmente contrastado com o mundo bizarro e repleto de invencionices de God, com seus experimentos extremados de cruzamento de animais, como um corpo de galinha com focinho de porco.
A princípio, Bella é uma criação demoníaca em si. O cérebro morto de Bella é restaurado pelo o do bebê que ela carregava quando era outra mulher. Mulher que a própria Bella conhecerá à frente e negará, por representar uma forma limitada de existência. Uma vida que levava junto ao ex-marido militar, um autoritário, controlador e violento homem. Como deboche ao sistema político da Inglaterra vitoriana, Lanthimos o transformará em um bode indefeso, um animal de estimação de uma nova Bella Baxter. Isso é de uma força e expressividade simbólica sem igual.
Em uma determinada perspectiva, Bella é criada por God, um monstro genial, um tipo de cientista maluco, para ser mais uma monstra, domesticada, exótica, uma prisioneira dele. God foi criado pelo seu pai, um cientista que fazia experimentos bizarros no corpo do filho. Entretanto, Bella, ao se relacionar com Candles, um aluno aplicado de medicina de God, passa a conhecer novas possibilidades e querer se abrir para o mundo. A abertura da janela que dá para o terraço deixa isso bem evidente. Bella é uma fênix reincidente. Antes de ser Bella, morre ao se atirar de uma ponte para renascer como Bella. Não aceita a doce prisão de God e resolve se libertar, sair do casulo e ir experimentar o mundo junto ao milionário Wedderburn (um Mark Ruffalo especialmente inspirado e transloucado), até igualmente levá-lo à loucura com seus impulsos incontroláveis de libertação. Bella Baxter traz a própria poção da libertação, uma criança em corpo de adulto a explorar sem freios o mundo. Assim, ela se depara com o sexo, a comida, a masturbação, os livros e a prostituição. A maneira como Bella encara tudo isso é sublime e libertador. O que Emma Stone faz com Bella Baxter é algo inatingível e inominável, além de ser grandioso em todas as cenas.
Mas "Pobres criaturas" traz uma delícia em particular. O nosso prazer como espectador de acompanhar as descobertas de Bella, de experimentar os prazeres e os desencantos do mundo pelos olhos dela. Incrível como Bella parte de um ingenuidade infantil para um lépido entendimento sobre as coisas, isso nos envolve até nas escolhas mais estranhas e bizarras que a moça faz. É uma maneira deliciosa de Lanthimos trabalhar com a identificação do espectador, de manipular nossos sentimentos ao seu bel prazer, dentro de um escopo que transita pelo estranho, por decidir caminhar por estradas que não tomaríamos na tal chamada sociedade polida.
O que Lanthimos propõe com Bella e o seu "Pobres criaturas" é a subversão do olhar e a sublevação do espírito humano domesticado. Quando Bella resolve encarar o mundo, sentimos que estamos com ela, desejamos o que ela deseja. Nós aqui da nossa prisão, observamos deliciosamente Bella em sua trajetória rumo ao fascinante e desconhecido mundo. Tudo torna-se um ímã para ela, tudo ela quer ter, viver e desejar. "Pobres criaturas" é muito sobre o quanto nos impusemos amarras, ou pelo menos as acatamos. Bella é uma forma de desconstrução do papel da mulher na sociedade, mas também mostra o quanto o homem está igualmente aprisionado na sua vertente possessiva e controladora. Em última instância, aqui os homens são todos eles opressores, embora cada qual do seu jeito.
No todo, uma atmosfera vertiginosa dita o tom do filme, algo muito calcado na visualidade e numa câmera que ora flutua agilmente pelas cenas ora se fixa mais nos rostos dos personagens. Ainda no âmbito da imagem, o que dizer da direção de arte exemplar, que nos intima a ver e apreciar a beleza do bizarro. A riqueza da Era Vitoriana é quase um personagem a dizer algo sobre um mundo tão fraturado quanto o rosto de God. A decadência infesta a alma e o espírito dos personagens. A cenografia, como todos os filmes do Lanthimos, possui um barroquismo, um excesso que impede uma apreensão do todo, pois os detalhes são abundantes. Por isso, o conjunto é algo que constantemente nos foge em "Pobres criaturas". Tudo é tão grave no primeiro plano, que o fundo não se descortina plenamente, e às vezes, pode até ser definido como um elemento poluidor da imagem, embora a sua beleza inebrie e ofusque periodicamente a razão. Nem as belas trilhas musicais de Jerskin Fendrix se interpõe à força imagética de "Pobres criaturas". A imagem é sempre onipotente, determinante e onipresente.
"Pobres criaturas" é uma fábula anticonvencional, subversiva, alegre, biliosa, feminista, intrépida, sem-vergonha, debochada, amoral, bem-humorada e desconcertante. Tem cenas memoráveis, como a de Bella descobrindo o sexo oral com uma mulher negra que trabalhava no mesmo bordel que ela. Lembro ainda da cena da dança disritmada de Bella com Wedderburn. E quando Bella reconstrói o mundo pela leitura e sustenta sua libertação embasada no conhecimento, não mais somente no instinto? Vale registrar que o contato de Bella com os livros nasce de uma relação que ela trava quando está aprisionada em um navio, a caminho de Atenas, tanto com a personagem Martha (a icônica Hanna Schygulla) quanto com a do sedutor iconoclasta Harry (Jerrod Carmichael), um homem negro afeito à literatura e filosofia, e que muito a influencia intelectualmente.
Visualmente, "Pobres criaturas" é um desbunde, um escárnio sobre a beleza de um mundo lindo por fora e podre por dentro. Os figurinos dizem muito sobre isso, a cenografia não fica para trás ao comunicar algo de ilusório e falso. Lanthimos desconstrói o mundo com o máximo de leveza possível, ri dele, faz uma troça aqui e outra acolá. Enfim, consegue traduzir a estranheza para uma linguagem crítica da sociedade capitalista, arrivista, vazia e fútil. Por isso, "Pobres criaturas" é o melhor cinema que esse grego nos entregou, pelo menos até o momento.
Valeu
ResponderExcluirDoido pra ver esse filme e depois de ler sua crítica tô ainda com mais vontade ainda.
ResponderExcluirUma pena que você não se identificou...
ExcluirVi ontem e fiquei totalmente impactada. Seu texto traduz magistralmente as inquietações provocadas pelo filme.
ResponderExcluirMuito obrigado pela leitura e comentário.
ExcluirTexto maravilhoso e motivador a não deixar de ver o filme!
ResponderExcluirObrigado pelo comentário.
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