Texto de Marco Fialho
Talvez nada defina tão bem "A Câmara" do que sua imagem inicial. Nela vemos fotos de todas as mulheres, que já tiveram mandato, expostas em um dos inúmeros halls do Congresso Nacional. Esse olhar múltiplo para os mandatos femininos e a sua atuação em um cotidiano tumultuado são as principais marcas deste lugar em que decisões importantes do país são tomadas e discutidas, às vezes em tons bem acalorados.
"A Câmara" possui um grande mérito de focar na chamada bancada feminina para retratar a vida no Câmara dos Deputados no mandato de 2018 a 2022, e o esforço de cada uma delas para trazer uma visão mais humana para as discussões. Mas também nesse ponto, contraditoriamente, o filme termina por mostrar o óbvio, do quanto diverso são as forças femininas no que tange às suas representações políticas. Tem de tudo em "A Câmara", desde as mulheres mais conservadoras e evangélicas, que se ocupam mais com uma reza, quando uma atividade religiosa deveria ser praticada em outros recintos, não ali na câmara, até as mulheres do campo progressista que lutam diária e ferozmente contra os representantes do patriarcado brasileiro.
O documentário talvez se perca no meio de tantas deputadas em uma profusão de falas e articulações políticas, que acabam, na montagem, pulverizando muito as ações e consequentemente as suas aspirações, ao fazer um recorte sobre a atuação das mulheres no terreno da representação política. A meu ver, tudo é muito disperso tanto nas escolhas muito amplas de perfis abordados quanto na própria preocupação acerca do que mostrar desse cotidiano político, oscilando se mostra os momentos fortuitos ou os grandes embates políticos que se faz no exercício da função parlamentar. "A Câmara" opta por mostrar um pouco de cada, o que termina sendo um resultado por demais dispersivo.
Vale mencionar, que os diretores Cristiane Bernardes e Tiago de Aragão se utilizam de uma abordagem observacional para narrar a sua história. Essa maneira de se olhar para o filme pressupõe que os realizadores optaram por colocar a câmera em um acompanhamento dos acontecimentos, sem buscar pronunciamentos diretos dos personagens para o filme. Assim, o trabalho dos diretores é o de estar atentos para registrar momentos e eventos políticos (ou não) que sejam cruciais para o painel sobre a atuação política das mulheres que pretendem mostrar, o que se torna uma tarefa hercúlea dada a quantidade de eventos que transcorrem diariamente envolvendo as tantas mulheres retratadas pelo documentário.
Porém, um documentário sobre a vida política brasileira, em especial na Era Bolsonaro, não tem como não esbarrar no inusitado e no discurso de ódio que dominou os campos de discussões no período encampado pelos diretores do filme. Talvez alguns dos fatos mais interessantes sejam os captados fora da atuação política em si, ou cenas que estão voltadas para o momento após os eventos retratados, como a da deputado de direita que diz em uma entrevista para a televisão que não existe racismo no Brasil e a deputada Sâmia Bonfim reage nos bastidores dizendo que a processará por esta infeliz declaração. Então, essa deputada de direita (que me foge o nome agora) começa a gravar a conversa e faz uma live para os seus seguidores dizendo que está sendo ameaçada pela esquerdista Sâmia, que segundo ela ganha votos com a vitimização dos negros no Brasil. Esse foi um circo rotineiro desse momento da vida política brasileira e um grande momento em que a câmera capta algo que ocorre depois do fato. O estilo observacional tem esses méritos, o de deixar a câmera ligada em momentos que outro tipos de abordagem não estariam a postos para registrar os acontecimentos inesperados.
E o que dizer da bajulação ridícula do Pastor Eurico com a oração da deputada Margarete Coelho, quando este agradece ao povo do Estado de origem dela por a terem eleito. São momentos que soam cômicos em um breve instante, mas que no fundo revelam o grau de ridicularização na qual a política é tratada no recinto da Câmara dos Deputados, em especial por estes políticos da chamada direita, que estão lá para representar os interesses do eleitorado mais conservador.
"A Câmara" é bem-sucedido quando se esforça em misturar momentos díspares do cotidiano dessas mulheres, mesclando atuação política direta com momentos flagrados de descontração, como a da deputada Benedita da Silva, do PT, comentando com algumas colegas e assessores, sobre a blusa que adquiriu em 1995, numa viagem à China, além de dois aparelhos de jantar igualmente comprados na mesma viagem. Esse tipo de documentário é aquele que com certeza reúne um material bruto de filmagem descomunal, já que tem como proposta registrar fatos cotidianos de muitos personagens. Jamais saberemos o que desse material bruto não foi utilizado, embora fosse interessante poder analisar o filme pelo que ele deixou de fora. Já imaginou quantos desses fatos filmados de maneira aleatória poderiam estar incluídos na edição?
Esse é um documentário, que mesmo que se disperse em sua narrativa e peque em não potencializar e se concentrar em um discurso mais homogêneo, consegue ser visto com grande prazer por trazer um registro sobre um modo de se fazer política no Brasil em um período específico, e olha que talvez esse nem fosse o objetivo maior do documentário. É bom poder ver como a elite patriarcal trata a política, com suas rezas desimportantes e suas piadinhas sem graças e de mal gosto, e ter ainda o contraponto de políticas sérias como Maria do Rosário e Sâmia Bonfim em suas incansáveis batalhas por uma política para os trabalhadores. De um lado o asco, de outro, o orgulho de termos uma representatividade política consequente e atenta à história do Brasil. São duas faces da mesma moeda. E o que dizer da imagem de Sâmia logo depois de enfrentar os tubarões patriarcais, entrar em seu gabinete e trocar amorosidades e amamentar a sua cria?
💛
ResponderExcluir