Texto de Marco Fialho
"Mal Viver" e "Viver Mal", dirigidos por João Canijo, são dois filmes que até podem ser vistos em separados, mas que foram feitos para serem apreciados um seguido do outro, como um díptico, já que sua filmagem contempla visões diferentes dos mesmos momentos, passados entre os donos de um hotel e os seus hóspedes no decorrer de uma diária. A grosso modo podemos dizer que em "Mal Viver" vemos a história pelo viés dos donos, já "Viver Mal" pelos olhos dos hóspedes.
Entre os dois episódios, "Mal Viver" é melhor estruturado, por ter ideias mais bem realizadas do que "Viver Mal", este último fica pulverizado pelas diversas histórias que não consegue amarrar com tanto êxito. Claro que há no todo uma ousadia formal da proposta que deve ser sublinhada, e devemos reconhecer que não se trata mesmo de uma abordagem fácil de se executar. Fiquei a me perguntar, ao término de "Viver Mal" se realmente era necessário se filmar essa perspectiva, se ela acrescenta algo de valioso à primeira parte. Fiquei ainda a indagar o porquê da história da relação entre filha, namorada e mãe sobressair mais do que as outras duas que são narradas em "Viver Mal". É o problema de se narrar três histórias dentro de um mesmo filme, o do peso que cada uma delas adquire no todo.
Mas há uma notória irregularidade entre os dois filmes, tanto do ponto de vista dramatúrgico quanto cinematográfico, sempre com "Mal Viver" vislumbrando algo de majestoso narrativamente, enquanto "Viver Mal" caminha em um sentido diferente, mais caótico, com planos menos rígidos e narrativamente mais perdido por entre os inúmeros personagens que quer abarcar e discutir.
Por isso, me concentrarei mais em "Mal Viver", que considero um primor de filme, que se sustenta por si, prescindindo inclusive de "Viver Mal". A riqueza da personagem Piedade é de um contenção dramática precisa, seu corpo diz mais que suas falas, mesmo que essas sejam igualmente cortantes e cruéis. A personagem da filha, Salomé, é igualmente forte, embora fisicamente se afirme imponente pelas palavras e comportamentos.
Existe entre elas uma divisão abissal, lembro do plano em que uma parede divide as duas, mãe e filha, pois essa é uma relação intransponível, impossível de conciliação. As mágoas e a frieza balizam algo incontornável entre as duas, uma separação para além do espacial. Logo no início, Canijo filma essa relação com uma câmera posta para fora da janela, assinalando o distanciamento implacável que veremos no decorrer do filme.
Me encantou como João Canijo sinaliza uma teatralização das interpretações e diálogos enquanto na encenação ele instaura uma poderosa estrutura narrativa impregnada pelo artifício cinematográfico, com a câmera propondo sempre ângulos sinuosos, próximos em demasia (com o propósito de ver menos, não mais) e imagens desfocadas de situações e personagens, sem abrir mão de uma fotografia quente, puxada para o alaranjado. Algumas cenas são caracterizadas por um humor ácido, de clientes discutindo entre si nas mesas enquanto Piedade, como sommelier que é, descreve texturas, sabores e acidez de um bom vinho servido à mesa.
"Mal Viver" consegue amalgamar em seu vigoroso corpo cinematográfico doses de uma cruel sensualidade almodovariana com um toque bergmaniano nas igualmente cruéis relações familiares. O filme discursa sobre uma estrutura conservadora e abusiva nesses vínculos, travestidos por um rigor e uma necessidade de controle das almas. São cinco mulheres, Sara é a matriarca, que fomentou uma relacionamento abusivo com a filha Piedade, que por sua vez, replicou o mesmo com a sua filha Salomé. A tia Raquel é bissexual e tem um espírito extrovertido, bem parecido com as personagens de Carmen Maura. O clima de decadência está posto, mesmo que discursos e comportamentos possam querer soar como transgressores.
Quando Amália Rodrigues ao final entoa "Estranha Forma de Vida", um dos seus maiores sucessos, muito diz sobre a conservadora sociedade lusitana que "Mal Viver" e "Viver Mal" retratam, e tudo parece se iluminar com a força de sua voz rascante como o vinho servido nas mesas. A brutalidade do cotidiano é escamoteada pelo visual vistoso do hotel e do restaurante, com suas sofisticações e pompas artificiais. As redes sociais vem a se somar a tudo isso, fortalecendo o famoso provincianismo lusitano. Sob o luxo, habita o sujo, a luxúria, os ressentimentos saem como baratas, por todos os ralos possíveis, tanto de quem hospeda quanto de quem é hospedado. Uma revelação áspera de uma sociedade mediática, doente e retrógrada.
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