Sinopse:
O jovem escritor Chang-Rae começa seu dia cuidando sozinho de sua mãe com câncer, enquanto, ao longo de um dia, prepara para a família um jantar tradicional do Ano Novo coreano que aprendeu com ela. Antes de seu pai e sua irmã voltarem para casa, uma visita inesperada e encontros em seu bairro em São Francisco desafiam seus sentimentos de ser o filho de seus pais.
A materialidade de uma memória melancólica e afetuosa
Texto de Marco Fialho
Pode-se dizer que Wayne Wang é um diretor muito experiente, apesar de inconstante. No currículo acumula filmes marcantes - Clube da felicidade e da sorte (1993), Cortina de fumaça e Sem fôlego (ambos de 1995), Mil anos de oração e A princesa de Nebraska (ambos de 2007) e algumas concessões comerciais - Em qualquer outro lugar (1999), Meu melhor amigo (2005) e As férias da minha vida (2006). Com o seu mais recente trabalho, "De volta para casa"(2019), ele retorna ao cinema que o consagrou e que melhor expressa sua trajetória, a do imigrante e o impacto nas relações trazido por essa situação. O roteiro é baseado na experiência do escritor Chang-Rae, que divide o roteiro com o diretor Wayne Wang.
Falar de imigração é extremamente difícil, já que quase sempre os relatos dramáticos partem de vivências vindas do próprio imigrante. Deve-se considerar inicialmente que o imigrante é um ser em si atípico a pisar em um território imprevisível. Está sempre tentando adaptar-se ao novo país e a uma outra cultura, enquanto tenta manter acesa a chama da cultura originária. Wang consegue transitar nessa delicada e tênue corda-bamba de traduzir os sentimentos de personagens mergulhados nessa vivência, de refletir acerca da sensação contínua de não pertencimento, de estar a viver em um eterno não-lugar. Porque o imigrante está sempre no terreno do indefinido. Creio ser essa a primeira ideia para pensarmos "De volta para casa". Mas além da questão espacial Wayne agrega ainda uma outra, a temporal.
Há uma complexidade na maneira como Wayne Wang constrói a história, pois apesar do mote ser a de um filho que mora em outra cidade e está retornando para casa para cuidar da mãe que está acamada com uma doença terminal, várias outras camadas vão se sobrepondo a essa, acrescendo muitas nuances que se avolumam cena a cena. A temporalidade vai se misturando e o passado quando evocado pelo presente, traz com ele os lampejos perfumados da memória. Nos perguntamos se além de carne, sangue e osso também somos alinhavados pela memória, não como um dado espiritual, mas sim com todo o peso de sua materialidade, uma temporalidade fluida, onde passado e presente não mais se diferenciam, muito pelo contrário, se fundem.
Em muitos momentos, o filho (Justin Chon) enxerga a mãe pela janela do tempo e transpõe sem cerimônias imagéticas o passado resgatado pelo poderoso fio da memória. Uma memória advinda da pele, agraciada pela concretude do existir, despertada pelo mundano, pelo sensorial que amalgama pessoas e coisas. Porém, Wayne não trata só do tempo e das coisas, se espraia também no aspecto espacial, nos ambientes. A casa, a escola e a rua estão vivos na memória. E a tudo isso soma-se o elemento do imigrante, pois será nos espaços, no tempo e nas coisas que o ser imigrante se constrói, com todas as lacunas possíveis dentro de mais um universo peculiar que é o da família, onde a mulher sacrifica tudo em nome desse ente poderoso chamado família. "De volta para casa" traz um simbolismo da própria ideia de morrer dessa mulher, o da sua finitude ou da perda de sentido de uma vida quando nada mais há para ser feito por esse ente maior que é a ideia de família. A abordagem de Wayne Wang tem exatamente o peso dessa crueldade, corta a nossa pele como a faca da primeira imagem do filme adentrando em uma carne já morta.
Wayne pode até tentar camuflar toda essa crueldade com a sutileza que lhe é habitual, mas mesmo assim ela cisma em vicejar, mesmo que seja em momentos aparentemente secundários, como acontece quando a mãe mostra uma revista onde ela aparece como jogadora de basquete. São essas abdicações que expõe o quanto a mãe abriu mão da sua vida no passado para embarcar no projeto familiar, de ser uma mãe exemplar e colaborativa para que o filho fosse um profissional dedicado. Em relação a Chang-Rae existe a pressão para ele não falhar, como alguém que não tem o direito de errar em busca da realização financeira e reconhecimento profissional.
O fardo de ser imigrante, de ser eternamente estrangeiro em um país que jamais sentirá como seu estará presente, porque isso sempre estará estampado como se estivesse escrito em um outdoor para que todos possam saber ou lembrar. Para vencer na América, vinda da Coreia, a família precisa pagar um alto preço. Wayne Wang consegue por meio do artifício cinematográfico revelar as fissuras presentes nesse frágil núcleo. No processo, a família se divide, com o filho indo estudar em Nova York e o marido se esbaldando em um caso amoroso. O sistema cobra que os indivíduos se dediquem ao máximo nos estudos e no trabalho, sobrando pouco espaço para as relações amorosas e de família. O mérito de Wayne é optar narrar essa história por meio de uma câmera fixa, sem grandes angulações, mas abusando de planos médios e gerais, alguns até privilegiando uma postura observacional, às vezes até de esguelha, por trás de paredes ou mesmo mantendo o distanciamento ao explorar o frio apartamento da família, construindo uma mise-en-scène realista onde os atores estão espacialmente livres, filmados em planos com poucos cortes nas cenas onde os diálogos entre os personagens estão presentes, o que os valoriza sobremaneira.
Apesar de Wayne realizar um filme introspectivo, até contido ao extremo, com as emoções controladas, há uma notória sensibilidade tanto na direção de atores quanto no posicionamento da câmera do diretor. "De volta para casa" se estrutura tal como um ritual, tendo a culinária como elemento narrativamente estruturante, no caso, um jantar tradicional de ano novo coreano oferecido como retribuição pelo filho à mãe. Mas ao mesmo tempo algo de macabro é inerente quando chega a hora da festividade em si (inclusive na sombria fotografia), pois a mãe tem um câncer no aparelho digestivo e precisará dele para dar conta desse incômodo jantar, montado com um grande aparato ritualístico. A troca de olhares e a presença do silêncio são estratégias que Wayne utiliza para fazer crescer a dramaticidade das cenas até a frustrada refeição final. É triste, mas às vezes não se pode mudar sequer o presente, imagina então o passado. E esse sentimento impregna melancolicamente todo o filme, o do tempo intrinsecamente atropelando e engolindo as ações dos personagens, os pegando de surpresa e lhes cobrando a conta na hora propícia.
"De volta para casa" revela-se um drama sóbrio, profundo, uma obra madura de um veterano cineasta de Hong Kong, radicado desde cedo nos Estados Unidos, que embora tenha transitado pelos estúdios hollywoodianos, se firmou como um expressivo artista do cinema independente. O título parece até conter algo de simbólico dessa trajetória do cineasta. Parece querer se referenciar na volta do diretor ao seu melhor estilo cinematográfico, onde a predominância da sutileza inunda um filme marcado por personagens despedaçados pelo distanciamento das relações e pela exigência de uma vitória de mais um povo que imigrou para tentar a sorte no estrangeiro. As memórias aqui também são as memórias do que não foi vivido, do tempo que se esvaiu e não retornará; serão ainda ditadas pela culpa advinda do passado e seus lampejos insistentes e melancólicos. Em "De volta para casa" Wayne Wang nos oferta tudo isso sim, mas sem jamais esquecer do fundamental: a existência do afeto como tempero da beleza e do sofrimento, um cinema para pensar e sentir ao mesmo tempo.
Visto por link encaminhado pela distribuidora.
Cotação: 4/5
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