Texto por Marco Fialho
O cinema de Naomi Kawase é rico em tornar relações humanas e com a natureza em um caminho para o mundo sensorial tanto dos personagens quanto dos espectadores. Floresta dos Lamentos reverbera esse cinema com uma imensa força. O filme tem dois personagens fundamentais: Shigeki (Shigeki Uda) e Mackiko (Mackiko Ono). Ambos são marcados por expressivas perdas. Shigeki, é viúvo há 33 anos e ainda manda cartas para a sua amada esposa, enquanto Mackiko, carrega a sombra e a culpa pela perda de um filho.
A presença angustiante dessas ausências antes de serem postas como o principal, servem apenas como base para tudo o que Kawase quer construir com e para esses dois personagens. Debaixo dessa superfície de dores, a diretora mergulha em um mundo sensorial para além do que é visível, até alcançar mistérios e fendas profundas que levam os personagens no âmago de suas almas. Por isso, Floresta dos Lamentos pode ser lido não só pela história que narra, mas para instaurar algo a mais, que definimos como uma experiência humana extraordinária.
Shigeki conhece Mackiko no asilo que mora e no qual a jovem trabalha como cuidadora. Ele escreve cartas para a esposa morta, ela se esmera em seu trabalho, tentando superar os traumas do passado. Esse encontro nem acontece de primeira, antes deles começarem a realmente a exalar respeito um pelo outro, algumas rusgas ocorrem, dificultando a relação, o que faz com que se desacredite que ambos pudessem esboçar alguma esperança de um bom convívio.
Mas Naomi Kawase não busca em fórmulas já batidas o segredo de sua mise-en-scène mágica. Quando Mackiko sai com Shigeki para um passeio de carro e uma lama no caminho a obriga a parar o veículo, ele foge em direção à floresta, obrigando a ela ir atrás dele. A partir daí é que Kawase balança nossas expectativas e leva o seu filme para um lugar que não é mais somente dos personagens, mas de todos nós, já que entramos juntos com eles nessa fatídica floresta. Mas para que tudo aconteça, é preciso uma trabalho de câmera que assim como os personagens esteja permanentemente em busca. Não casualmente, a câmera de Kawase se mostra instável, como se não só expressasse a busca dos personagens por si mesmos, mas do próprio filme a tatear espaço e emoções que transitam naqueles corpos. A instabilidade e a vertigem são as marcas desses corpos que buscam se reequilibrar nesse novo contexto da floresta e a câmera os persegue. Nota-se que em diversos momentos a câmera narrativamente não está no melhor ângulo, pois o objetivo não é fazer o plano perfeito, mas sim viver o processo desses corpos que estão a buscar respostas.
Por isso temos a impressão de que quando Shigeki e Mackiko adentram na floresta, é como se um novo filme começasse nesse instante, exatamente quando somos imersos a uma situação que nos remete às origens humanas, são corpos humanos em um ambiente selvagem, como se tudo pudesse forçosamente ser zerado e iniciado novamente. De repente, vemos um homem velho e uma jovem tendo que se reinventar em um novo mundo. Ninguém é melhor do que Kawase quando o tema é o da reconexão do homem com a natureza. Calor, frio, chuva, silêncio e sons misteriosos, tudo aqui mostra o quanto estamos longe da natureza, a ponto que desaprendemos como lidar com ela, e consequentemente, conosco mesmo. Como em um passe de mágica, o mundo de fora passa não mais existir e quando um helicóptero se aproxima deles, talvez numa tentativa de capturá-los, eles sequer ameaçam pedir por socorro. O atributo de se perder para se achar, parece fazer todo o sentido aqui.
Além da reconexão com a natureza, os personagens tem a possibilidade de usar o afeto como força motriz de sobrevivência, e uma das ações perceptíveis ocorre quando Mackiko usa o corpo como uma fonte de calor numa noite fria, como um processo de salvação do outro e de redenção para consigo mesma. De um lado temos a grande carência de Shigeki, a de suprir o companheirismo da esposa, e de outro, temos Mackiko, tendo a oportunidade de se reinventar como mãe em outra situação. A floresta se mostra o local perfeito para que os personagens se reconciliarem com seus próprios sentimentos. A floresta funcionando como uma espécie de entidade, um corpo disponível para experimentações e novas trocas de experiências e oportunidades de se reestruturar o viver, inclusive reaproximando o homem na sua relação com a terra para além da morte. Abraçar a terra é uma forma de aceitação do luto.
Em Naomi Kawase, a floresta é um corpo sólido, um universo íntegro, capaz de instaurar códigos e reconectar sentimentos que os personagens nem acreditavam mais ter. Essa é a magia da floresta, o encantamento que só ela com seu éthos é capaz reavivar emoções escondidas e ressentidas dos seres. Shigeki torna-se uma espécie de filho, já que Mackiko literalmente o agasalha e o protege com os braços maternais, enquanto Mackiko restaura o sentimento de companheirismo de Shigeki.
Mas a força cênica que Naomi Kawase proporciona é relativamente simples. Não se precisa de grandes efeitos visuais ou sonoros, tudo é pensado por meio de uma mera caixinha de música, capaz de instaurar elos inimagináveis, que extrapolam o espaço da floresta e a própria relação entre os dois personagens. Quando Mackiko levanta a caixinha de música para os céus, depois de aproveitá-la como vínculo sentimental entre ela e Shigeki, ela vai de encontro com o ilimitado e com uma beleza que extrapola os limites até mesmo da tela do cinema. É o encantamento que só o cinema de Kawase atinge ao criar uma metafísica a partir de um simples gesto e pela ação dos corpos conectados pela natureza.

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