Uma geração e seu quebra-cabeça
Crítica por Marco Fialho
"O que resta" marca uma bela estreia em longa-metragem de Fernanda Teixeira. O filme é um daqueles que se pode chamar de geracional. Seu objeto é uma geração abastada, branca e repleta de crises existenciais, enfim, o famoso white people problems. Esse é o primeiro dado a ser situado no filme que realiza uma instigante análise do ponto de vista de uma determinada juventude da zona sul carioca.
A partir do que é visto em tela, há algo de intrigante no título, afinal o que resta, assim como o próprio filme, insinua uma dubiedade interessante. O título seria referenciado a algo pejorativo, isto é, o que sobrou de uma determinada geração? Ou ainda, seria invocado um quê de positivo, pois aqueles personagens faziam tudo o que caberia a eles realizar, no caso, viver com intensidade a sua própria vida? O que proponho aqui é exatamente isso, refletir a partir dessa ambiguidade, e mais do que isso, pensar a própria obra partindo dessa ideia de duplo. Entretanto o duplo ainda poderia ser pouco se pensarmos na forma fragmentada na qual a história nos chega. Há um estilhaçamento formal, talvez mais do que uma inversão narrativa, pois a história não está só colocada de trás para frente, ela está tal e qual os personagens, disposta em um quebra-cabeça que não é só temporal, mas também envolto em sonhos, projeções e delírios dos personagens, e porque não dizer da própria realizadora.
"O que resta" só poderia mesmo ser montado pela própria diretora, pois poucos dados são dados objetivamente. Talvez o mais certeiro seja uma festa onde o casal Bárbara e Luiz chegam para reencontrar os amigos na linda e ostentosa fazenda de Iuri (Higor Campagnaro). Mas essas informações só a temos ao final do filme. Até lá somos metralhados por conversas atravessadas em lugares que muitas vezes não sabemos se é passado ou delírio de um dos personagens. A impressão que fica é que em alguns momentos construímos uma possibilidade de história que podemos apenas classificá-la como nossa verdade, afinal, o filme nos permite amarrar a história como nos convém e tergiversar livremente sobre enlaces. Todavia há pontes temporais possíveis, em especial a partir do figurino dos personagens. Isso pode parecer pouco, mas é o que temos ou a matéria-prima que o filme nos oferece. Enquanto isso, a fotografia realça sempre o artificialismo fugidio presente nas relações interpessoais e a câmera uma passageira a serviço das ações e movimentações dos personagens. Cabe destacar a impecável direção de atores, que consegue extrair interpretações vigorosas que intercalam com precisão momentos de intensidade e crise emocional.
Bárbara e Luiz estão morando juntos há nove anos. Sim, essa é uma informação crucial, pois eles são um peixe fora d'água, os únicos héteros do grupo de amigos que sobreviveram a um tempo onde as relações amorosas e sobretudo sexuais sofreram mudanças expressivas no âmbito das camadas mais abastadas da sociedade carioca. Mas o filme não trata só de relações interpessoais, ele traz à baila também a mediocridade das relações de trabalho e o inevitável engajamento nesse processo de aviltamento humano, tal e qual ele está posto em nossos dias.
Muito por causa dessa inserção ao mundo do trabalho, em especial a do casal Bárbara (Renata Guida) e Luiz (Guilherme Dellorto), chegamos a um dos pontos mais interessantes do filme: a discreta, porém significativa, entrada dos despossuídos no enredo do filme. Um desses momentos acontece quando um dos amigos de Iuri vai até o caseiro da propriedade pedir ajuda para acender uma fogueira. O pedinte burguês não adentra na casa e ainda faz caras e bocas enquanto o caseiro está a buscar os instrumentos necessários para acender a tal fogueira. Tudo é muito sutil, mas ao mesmo tempo revelador das relações de classe que está ali em jogo. Um outro momento é mais poético, mas ainda assim, expressivo sobre o todo. Bárbara e Luiz, o casal hétero estão relaxados na cama. Ela começa a falar da cômoda, de quanto a amava e sonhava tê-la em seu apartamento. Luiz então começa a questionar o quanto aquele móvel era tão senhorial e pouco se adequaria à proposta de casa deles. Então inicia uma divagação de como seria a vida naquela fazenda na época da escravidão, como os senhores chamavam os escravos e como eles o serviam. Essa cena, bastante singela, muito diz sobre os resquícios históricos e o caráter decadente de nosso mundo. A diretora nos revela um apagamento histórico, pois os descendentes desses supostos escravos estão também pelo mundo construindo suas histórias, no caso do filme, no extra-campo.
Entretanto, apesar de toda essa decadência implícita no filme (o que justifica chamarmos de white people problems), há um conflito latente no filme sobre o comportamento dessa geração, que no caso, já com trinta e poucos anos, são jovens vivendo os momentos finais de sua juventude. Há um racha inconteste na história. O casal Bárbara e Luiz são héteros imersos no mundo do trabalho (financeiramente menos abastados), enquanto Iuri, herdeiro da linda fazenda, vive com um homem andrógino e Patrícia (Bruna Linzmeyer) se entrega leve e bissexualmente aos prazeres do sexo. As inúmeras cenas de sexo que assistimos fazem parte do grande mistério do filme. Quais seriam verdadeiras e quais seriam imaginação ou desejo reprimido? E em caso de imaginação, de quem seria esses delírios sexuais? Essas são as perguntas mais abertas deixadas pelo filme, pois ficam restritas à fantasia e sua autoria são obscuras. Seriam de Iuri, Patrícia, Bárbara ou de Luiz? Ou seriam de vários deles? Essa é uma parte interessante do quebra-cabeça proposto por Fernanda Teixeira, um grande trunfo de montagem, que mais confunde do que esclarece todas as cenas.
Mas talvez esse amontoado de fragmentos e dubiedades seja mesmo uma qualidade inerente a "O que resta", o de revelar um estado de espírito turbulento e caótico, imerso em crises perpassadas pelas incertezas emocionais, onde as drogas lícitas e ilícitas sejam os detonadores de alucinações, confissões, aparição de desejos e sobretudo um potente manisfesto do vazio existencial de uma geração sem grandes ambições, preocupada em viver o momento e suas pequenas liberdades pessoais. São enfim a sombra de um país em cacos onde os mais abastados vivem a artificialidade de um mundo sem promessas. O prazer, envolvendo aí o sexo e as drogas, estão postos como o que resta para essa determinada geração, enquanto que concomitantemente essas realizações evidenciam também o que resta de um país cada vez mais afogado no egoísmo hedonista de sua elite branca e decadente.
Visto no Estação botafogo 1, durante o evento Estreias Cariocas, no dia 15/03/2019.
Cotação: 3/5
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