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A PAIXÃO SEGUNDO G.H. (2023) Dir. Luiz Fernando Carvalho

Texto de Marco Fialho "A paixão segundo G.H." deve ser encarado como aquele filme que desafia o espectador, da primeira à última cena, por não permitir uma brecha que facilite a sua fruição. O primeiro elemento que chama logo a atenção é o formato 4x4 da tela (um quadrado), que acentua e favorece a uma série de closes que a câmera faz de G.H. (uma Maria Fernanda Cândido plena, inteiramente tomada pela personagem). O que mais marca o filme é o monólogo de G.H. Ele é majestoso, imperativo... sufocante. Luiz Fernando Carvalho faz dele a sua arma mais poderosa para desconstruir o clássico romance de Clarice Lispector. Os excessos interpretativos tencionam constantemente os limites entre teatro, cinema e literatura. Se o close transforma essa obra em uma peça de câmera altamente cinematográfica, a verborragia o aproxima do teatro (até mais do que da literatura) pela dramaticidade que as cenas são filmadas. Mas existem momentos em que a palavra ganha contornos nítidos, já que a son
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NADA SERÁ COMO ANTES: A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA (2023) Dir. Ana Rieper

Texto de Marco Fialho O crítico francês Jean Douchet, em um texto hoje clássico sobre crítica de cinema (A arte de amar, 1961) escreveu que um crítico para fazer um bom texto deve buscar um equilíbrio entre a razão e a emoção. Confesso minha dificuldade em empregar essa metodologia após assistir a "Nada será como antes", de Ana Rieper. Isso porque assistir ao documentário sobre o Clube da Esquina, ou mais especificamente, sobre o processo de composição das músicas do icônico LP duplo, fui tomado por uma baita emoção, pois funcionou para mim como se estivessem contando espiritualmente um pouco da minha vida, da minha formação como sujeito que sou hoje.  O LP "Clube da Esquina nº 1" (1972) foi decisivo para a minha juventude entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Lembro de ouvir infinitamente tanto o volume 1 quanto o 2, lançado em 1979. A ideia de um grupo heterogêneo, livre, que flertava com o caótico e que juntos fizeram um disco mítico está presente n

VERISSIMO (2023) Dir. Angelo Defanti

Texto de Marco Fialho "Verissimo" é um documentário especial, daqueles que ficam à espreita, tentando descobrir um personagem pelas beiras. Sua empreitada torna-se surpreendente, pois debaixo dos escombros do tempo, o filme revela detalhes de um Verissimo que quase não fala, embora observe muito sobre o mundo a sua volta. O filme visita Verissimo às vésperas de completar 80 anos de idade, se instala em sua casa e adota cinematograficamente uma atitude compatível a do personagem, a de observar a partir de uma câmera fixa, discreta em sua indiscrição de se alojar na intimidade de Verissimo.  Logo no início, o diretor Angelo Defanti mostra planos da casa do protagonista. O silêncio e a paz predominam, apenas interrompidos pelo som de um peculiar badalar de um grande e imponente relógio vertical. O tempo toma conta do espaço e parece ameaçar com o aviso permanente de que os 80 anos estão chegando. O badalar insistente não deixa que esqueçamos disso. O filme registra esse tempo co

COBERTURA DO FESTIVAL "É TUDO VERDADE" - EDIÇÃO 2024

COBERTURA É TUDO VERDADE - EDIÇÃO 2024 UM FILME PARA BEATRICE (2024) Dir. Helena Solberg COTAÇÃO: 8 Comentário: A escritora Beatrice Andreose, depois de assistir ao documentário "A entrevista", de 1966, dirigido por Helena Solberg, lança uma pergunta à diretora brasileira: Como estão hoje as mulheres brasileiras? A partir dessa interrogação Solberg vai a campo tentar, se não responder, pelo menos jogar uma luz sobre o tema. Assim, a diretora assume a narração do filme para a partir de questões postas em seus filmes antigos até chegar aos nossos dias, onde em conversa com a professora Heloísa Buarque de Hollanda se esforça por entender a complexidade do feminismo dos nossos tempos. Fica evidente, que precisamos hoje expandir o campo do feminino, com vozes, negras, trans e não binárias. Conclui-se ainda que a discussão acerca do gênero precisa ser expandida para ser melhor compreendida. Um filme imprescindível, que parte de uma pergunta para chegar a tantas outras, o que faz de

ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS (2023) Dir. Eduardo Escorel

A sonata cândida de Escorel  Texto de Marco Fialho "Antonio Candido, anotações finais", de Eduardo Escorel, se desenvolve para os espectadores, ou melhor, ouvintes, como uma sonata. O diretor parte de seus cadernos, escritos desde à infância, centrando nos pensamentos registrados nos três últimos cadernos, de 2015 a 2017. O caráter diminuto da proposta formal não o desmerece como documentário, muito pelo contrário, o expande por concentração, de um mínimo que se torna gigante na tela, tal como as sonatas de Beethoven, que aliás, inundam nossos sentidos durante a projeção e imantam a nossa atenção.         Escorel consegue aqui dar uma aula de reconstituição histórica e memorialística como poucos. Em mãos, tem-se pouco, os cadernos de anotações de Candido e algumas imagens de arquivo desse grande intelectual. A grandeza do pensamento de Antonio Candido explode a cada nova revelação que este nos faz, tendo a voz precisa e aveludada do ator Matheus Nachtergaele pontuando a narra

A CAMAREIRA (2014) Dir. Ingo Haeb

Texto de Marco Fialho O cinema alemão é sempre surpreendente, capaz de revelar obras diferenciadas e inusitadas. É o caso de "A Camareira", segundo longa do diretor Ingo Haeb. Por meio de uma personagem, a camareira Lynn, o diretor lança imagens que por si esboçam um viés no mínimo curioso sobre a sociedade alemã do início do século XXI, em especial a relação entre o mundo do trabalho e o mundo íntimo. Esse é um típico drama cômico, capaz de revelar um mundo que caminha a passos largos para a impessoalidade e dominado pelo asséptico, e Ingo Haeb pode ser visto como um cineasta a questionar um determinado  status quo que tende a uma crescente indiferença frente ao humano. Desde a primeira cena de "A camareira", o que vemos é a fascinante personagem Lynn tentando entender o mundo com seu espírito curioso e sistematicamente se assustando com ele. A direção de Ingo Haeb é de um raro primor na composição dos planos, a maioria deles fixos ou com delicados movimentos de c

FRIDA (2023) Dir. Carla Gutiérrez

Texto de Marco Fialho "Frida", dirigido por Carla Gutiérrez, é um documentário no mínimo impactante e forte, que traça um retrato não só de uma grande artista, mas também de uma mulher e cidadã de alto calibre histórico. O filme redimensiona, em especial, a humanidade vigorosa que possibilitou Frida tornar-se um dos grandes nomes do século XX, uma referência de como ser mulher em um mundo tomado pelo poder masculino. O maior mérito da diretora Carla Gutiérrez é tornar Frida a maior narradora do filme pela voz calibrada de Fernanda Echevarría del Rivero, se utilizando dos diários e cartas da artista para que somente ouvíssemos a sua voz. Quando temos o ponto de vista de Diego Rivera ouvimos a voz de Jorge Richards, assim cada personagem vai assumindo a sua própria voz, o que faz o filme crescer eticamente.  Carla Gutiérrez também incorpora à narrativa o fantástico trabalho de animação comandado por Sofia Inés Cázeres Lira, que atua na expansão das obras pictóricas de Frida Kah

AMMONITE (2020) Dir. Francis Lee

Texto de Marco Fialho O título do filme de Francis Lee investe em um duplo sentido: um relativo à paleontologia, em que ammonite é um tipo de fóssil na qual a personagem Mary Anning (Kate Winslet) se dedica arduamente; em outro sentido, o título faz referência à própria personalidade introvertida e antissocial da pesquisadora, já que as ammonites são fósseis em formato de conchas. "Ammonite" se propõe a discutir essa personagem misteriosa de Mary, sua relação tanto com a sociedade quanto com a sua rotina como paleontóloga.  Mary Anning vive reclusa, em uma pequena cidade marítima em Lyme Regis, sul da Inglaterra, hoje conhecida como Costa Jurássica, graças ao trabalho dessa grande pesquisadora. Mas o filme dá uma guinada quando entra em cena Charlotte Murchison (Saoirse Ronan), mulher de um negociante interessado nas pesquisa de Mary. A história vai lentamente assumindo uma faceta romântica, com o envolvimento amoroso dessas duas mulheres fragilizadas por um mundo excessivame

SAUDOSA MALOCA (2023) Dir. Pedro Serrano

Texto de Marco Fialho "Saudosa Maloca", dirigido por Pedro Serrano, poderia até ser mais uma das várias cinebiografias dedicadas aos nossos grandes nomes da música popular brasileira, mas felizmente não o é. Talvez, o mais adequado a dizer do filme é que ele está mais para nos aproximar de um universo das músicas do grande Adoniran Barbosa, assim como de sua idiossincrática figura. E esse é o charme dele. Esse fato explicado acima nos encaminha para uma questão central em relação ao espectador: se você não é familiar do universo de Adoniran, pouco vai apreender e até curtir as diversas referências nas quais o filme se assenta. A começar pelos personagens, que nada mais são do que os que desfilam pelos sambas e canções compostas por esta personalidade tão paulistana do Bexiga, com seu português macarrônico e popularesco, com os neologismos típicos desse mundo contaminado pela cultura urbana vinda das ruas. Personagens como Joca (Gustavo Machado), Matogrosso (um esplêndido

MORCEGO NEGRO (2022) Dir. Chaim Litewski e Cleisson Vidal

Texto de Marco Fialho "Morcego negro" resgata um dos momentos mais bizarros da história política brasileira, a passagem meteórica e avassaladora do empresário PC Farias pelo governo Collor de Mello, lá pelo início dos anos 1990. Uma aventura quixotesca, que nasceu nas Alagoas, passou por Brasília e terminou nas mais obscuras páginas policiais. Em "Morcego Negro", a montagem impressiona por encadear as fases da vida de PC Farias aos depoimentos de pessoas que conviveram com ele, sem esquecer de incluir as memórias que pululam de arquivos audiovisuais e fotográficos da família e amigos. A história é contada seguindo a cronologia dos fatos, o que garante uma boa atenção do público ao filme. Alguns momentos o documentário é tomado pela comédia, muito dada pelo inusitado que foi a trajetória desse personagem, que mesmo vindo de uma camada financeira mediana, ganhou milhões, além de conquistar uma influência política em um momento em que as maracutaias se avolumaram no pa